Onde se localiza espacial e temporalmente o conteúdo histórico de qualidade da Wikipédia em inglês e português? Aqui vamos apresentar alguns números que nos ajudam a refletir sobre qual história contam os verbetes da Wikipédia.
Os dados deste fio foram levantados para escrita do artigo “Wikipédia: públicos globais, histórias digitais”, recentemente publicado no dossiê “História global e digital: novos horizontes para a investigação histórica”, da Revista Esboços, disponível no link:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/esbocos/issue/view/3086/showToc
Apresentaremos uma análise dos verbetes destacados, que são aqueles que passaram por uma avaliação da comunidade e são considerados de melhor qualidade na plataforma. Para saber mais, indicamos a thread que fizemos:
https://twitter.com/historianawiki/status/1252613751834120194
Essa escolha nos ajudou a filtrar o conteúdo, evitando verbetes ainda em construção ou que não têm fontes ou informações suficientes. Certamente uma análise mais ampla pode ser feita com o auxílio de ferramentas mais sofisticadas de análise de dados.
Começaremos pela maior e mais antiga versão da plataforma: a wikipédia em inglês. A versão anglófona da plataforma, em outubro de 2019, tinha um total de 186 verbetes destacados e inseridos na categoria “History”.
Temporalmente, 64,4% destes verbetes são de história contemporânea, 13% de história medieval, 12% de história moderna e 10,6% de história antiga. Espacialmente, a Europa ocupa 42,3% do conteúdo, seguida por 25,5% na América do Norte, 16,8% Ásia,
6,7% África, 4,3% América do Sul e 2,9% Oceania. Já na Wikipédia em português, com 103 verbetes destacados categorizados como “História”, em outubro de 2019, 55,4% eram de história contemporânea, 23,9% antiga, 10,9% moderna e 9,8% medieval.
Espacialmente, 58,2% do conteúdo é sobre a Europa, 15,3% América do Sul, 9,2% América do Norte, 11,2% Ásia e 4,1% África.
Resumindo a discussão sobre os dados:
Esses dados demonstram um maior interesse dos editores pela edição de uma história européia e contemporânea. Também identificamos um grande número de verbetes que tratam sobre história militar, principalmente primeira e segunda guerra mundiais,
mas também guerra do Vietnã, no caso da Wikipédia em Inglês. Sabemos que a maior parte dos editores de verbetes de história da Wikipédia não são historiadores, o que também nos leva a entender um interesse público/prático pela história.
Outros critérios, como o critério de notoriedade, que determina um nível mínimo de relevância para a manutenção de um verbete na plataforma, também pode ajudar a questionar: qual história é considerada importante?
Acreditamos que o conteúdo da Wikipédia reflete anos de ensino de uma história centrada nos feitos dos europeus, narrados pelos europeus. Também podemos, a partir disso, repensar o princípio da imparcialidade.
Como já comentamos em outros posts, a imparcialidade da Wikipédia se dá através do equilíbrio do conteúdo, onde um assunto deve ter o espaço de sua real importância para a sociedade, assim como
as diferentes visões sobre um determinado fato devem ser consideradas no momento de escrever um verbete. Este assunto, por ser recorrente, pode ser encontrado em algumas threads que já fizemos aqui:
História da África:
https://twitter.com/historianawiki/status/1265381534342709250
Viés de Gênero:
https://twitter.com/historianawiki/status/1266052290001207301
Questionamento da imparcialidade a partir das disputas de narrativa sobre o assassinato de George Floyd:
https://twitter.com/historianawiki/status/1272968870266101767
Portanto, nosso convite é para que historiadoras, historiadores e pessoas interessadas em “descolonizar” o conteúdo da Wikipédia se engajem na plataforma a fim de aumentar a representatividade de diferentes histórias e dinâmicas culturais.
Também é importante que superemos o período colonial da história em seu conteúdo na Wikipédia, apresentando a história dos povos africanos e latinoamericanos independentes.
A Wikipédia é uma ferramenta que coloca em xeque os privilégios e autoridade dos historiadores frente ao público interessado por história, pois as titulações não têm validade na plataforma. Ela é, assim, uma oportunidade
para o encontro do conhecimento mobilizado pela historiografia e os interesses práticos da história, de pessoas que não têm necessariamente uma formação na área, mas que se interessam por estudá-la e, até mesmo, escrevê-la.
No artigo, também demonstramos como existe uma disputa viva pela memória na plataforma, perpassada por revisionismos e negacionismos, que devem ser combatidos com o conhecimento profissionalmente produzido.
Vemos, assim, um grande desafio pela frente: “é necessário sair da zona de conforto e buscar entender, assim como praticar, a transgressão territorial da linguagem acadêmica para a linguagem dos públicos (globais) através das histórias (digitais).”